Uso da colchicina na redução do risco cardiovascular e prevenção de eventos cardíacos.

A doença arterial coronariana (DAC) representa uma das principais causas de morbidade e mortalidade mundial. Nos últimos anos, o papel da inflamação na progressão da placa aterosclerótica e sua desestabilização na trombose tem ganhado destaque, abrindo caminho para novas estratégias terapêuticas. Entre elas, a colchicina, um agente anti-inflamatório bem estabelecido, seguro e barato, tem sido amplamente estudado para redução do risco cardiovascular, especialmente em pacientes com coronariopatia crônica. 

Vamos explorar aqui as evidências mais recentes sobre o uso da colchicina na tentativa de reduzir o componente inflamatório do risco coronariano, com foco em sua eficácia, segurança e aplicabilidade na prática clínica (veja também nosso post sobre medicina baseada em evidências).

O papel da inflamação na doença arterial coronariana

A aterosclerose é uma doença inflamatória crônica, na qual a resposta imune desempenha um papel central no desenvolvimento e progressão das placas ateroscleróticas. A inflamação contribui para a instabilidade da placa, ruptura e subsequentes eventos isquêmicos, como infarto agudo do miocárdio (IAM) e acidente vascular cerebral (AVC). Diante disso, o controle do componente inflamatório tornou-se um alvo terapêutico promissor na prevenção secundária de eventos cardiovasculares.

Sobre a colchicina

A colchicina é um alcaloide derivado da planta Colchicum autumnale (açafrão-do-prado), pertencente à família dos lírios. É principalmente utilizada por sua ação anti-inflamatória no tratamento das crises agudas de gota e na prevenção de crises na artrite gotosa crônica.

Colchicum autumnale ou açafrão-do-prado, planta da qual é extraído o alcaloide que dá origem à colchicina.

O mecanismo de ação do medicamento não está completamente estabelecido, no entanto, sabe-se que pode atuar de diferentes maneiras:

  • Na gota, interrompe as funções do citoesqueleto ao inibir a polimerização da β-tubulina em microtúbulos, prevenindo a ativação, desgranulação e migração de neutrófilos.
  • Interfere na montagem intracelular do complexo inflamossomo, presente em neutrófilos e monócitos, que medeia a ativação do mediador inflamatório interleucina-1β.
  • Bloqueia o crescimento dos microtúbulos em baixas concentrações e causa a despolimerização dos microtúbulos em altas concentrações.

A colchicina é investigada no tratamento das doenças cardiovasculares devido ao papel da inflamação na aterosclerose, e, dessa forma, esses mecanismos a tornam uma opção interessante para modular a inflamação na doença arterial coronariana.

Evidências recentes: o que dizem os estudos?

1. Eficácia da colchicina após infarto agudo do miocárdio

O estudo Colchicine Cardiovascular Outcomes Trial (COLCOT – 2019) avaliou uso de baixa dose de colchicina (0,5 mg/dia) em 4.745 pacientes pós-infarto agudo do miocárdio (IAM) recente. Após uma mediana de 22,6 meses de acompanhamento, a pesquisa demonstrou benefício moderado da colchicina em reduzir o risco do desfecho primário (morte cardiovascular, IAM, AVC ou revascularização urgente) em 23% (HR 0,77; IC 95%: 0,61-0,96). 

Por outro lado, o estudo CLEAR SYNERGY (OASIS 9), publicado em 2024, não replicou esses benefícios em pacientes com IAM submetidos à intervenção coronária percutânea (ICP), mostrando resultados neutros para o desfecho primário (ver a seguir).

2. Colchicina na prevenção secundária de eventos cardiovasculares

O estudo Low-Dose Colchicine foi um marco na avaliação da colchicina em pacientes com coronariopatia crônica estável  (o LoDoCo1, publicado em 2013  foi o estudo piloto, enquanto o LoDoCo2, publicado em 2020, foi o estudo definitivo).

O ensaio clínico randomizado (LoDoCo2) incluiu 5.522 participantes e demonstrou que a colchicina em baixa dose (0,5 mg/dia), comparado ao placebo, reduziu o risco do desfecho primário composto (morte cardiovascular, IAM, AVC isquêmico ou revascularização coronariana urgente), em 31% (HR 0,69; IC 95% 0,57-0,83). A redução foi particularmente evidente na revascularização coronária por isquemia (4,9% vs. 6,4%) urgente. No entanto, houve um sinal de aumento na mortalidade por causas não cardiovasculares, embora sem significância estatística.

Colchicina no infarto agudo do miocárdio: resultados controversos

Mesmo com os resultados positivos dos ensaios clínicos sobre o uso da colchicina na doença coronária crônica, ainda faltam estudos de maior escala, multicêntricos, com população mais representativa e desfechos clínicos mais robustos. O estudo LoDoCo2 trouxe evidências favoráveis, mas a recomendação definitiva da colchicina nesse contexto ainda carece de investigação. Atualmente, sua indicação para prevenção secundária na doença coronária crônica é classe 2b, nível de evidência B-R (qualidade moderada de evidências).

Além disso, embora os benefícios da colchicina na prevenção secundária sejam bem estabelecidos, os estudos sobre seu uso na fase aguda do infarto mostram resultados contraditórios.

3. Colchicina em pacientes com SCA: eficácia questionada e riscos elevados

O estudo Australian COPS Randomized Clinical Trial (COPS trial – 2020) investigou o impacto da colchicina em pacientes com síndrome coronariana aguda (SCA) e não confirmou o benefício do medicamento. Este ensaio clínico multicêntrico, randomizado, duplo-cego e controlado por placebo envolveu 795 pacientes de 17 hospitais australianos, que receberam colchicina (0,5 mg 2x/dia por um mês, depois 0,5 mg/dia por 11 meses) ou placebo, além da terapia padrão. Após 1 ano, não houve redução significativa nos desfechos primários (P=0,09). No entanto, houve maior mortalidade (8 versus 1; P=0,017), com destaque para morte não cardiovascular (5 versus 0; P=0,024) no grupo colchicina. Os principais eventos adversos foram gastrointestinais e semelhantes entre os grupos.

Em resumo, a pesquisa concluiu que a colchicina não melhorou os desfechos cardiovasculares e apontou um possível aumento da mortalidade geral, sugerindo cautela no uso da colchicina nessa população.

4. IAM com supra (angioplastia primária): falha da colchicina em reduzir eventos cardiovasculares maiores

O estudo CLEAR SYNERGY (OASIS 9 – 2024), que incluiu 7.062 pacientes com infarto agudo do miocárdio submetidos à intervenção coronariana percutânea (ICP), demonstrou que a colchicina 0,5 mg/dia não reduziu eventos cardiovasculares maiores (major adverse cardiovascular events – MACE) após três anos de acompanhamento (HR 0,99; IC 95% 0,85-1,16), sugerindo que seu benefício pode ser limitado em cenários agudos.

A pesquisa ainda está em análise, mas os dados preliminares não mostram evidências claras de benefício, indicando necessidade de mais estudos para definir o papel da colchicina na fase aguda do IAM. Esses achados estão alinhados com os do estudo COPS.

Colchicina na prevenção do risco cardiovascular: resultados dos principais estudos.
Tabela com resumo dos principais estudos sobre o uso da colchicina na redução dos eventos cardiovasculares.

Segurança e tolerabilidade da colchicina

A colchicina é geralmente bem tolerada, mas não está isenta de efeitos adversos. Os mais comuns incluem sintomas gastrointestinais, como diarreia, náuseas e dor abdominal, que são geralmente leves e transitórios. Elevações transitórias da creatina quinase (CK) também foram relatadas, possivelmente relacionadas à interação com estatinas. 

Deve ser usada com cautela em pacientes com doença renal crônica ou hepática grave, pois sua eliminação ocorre após metabolismo hepático e excreção biliar. Também interage com inibidores do CYP3A4 e glicoproteína P, exigindo ajustes de dose quando usada com medicamentos como amiodarona e bloqueadores de canais de cálcio.Quando se considera o uso em pacientes com doença cardiovascular, é importante considerar os resultados dos estudos, como o LoDoCo2 e o COPS Trial, que indicaram um possível aumento discreto da mortalidade não cardiovascular em alguns subgrupos. A incidência de efeitos adversos gastrointestinais foi maior nos grupos tratados com colchicina, mas sem impacto clínico relevante.

Quando considerar a colchicina na prática clínica?

Com base nas evidências atuais, a colchicina pode atuar como terapia adjuvante em pacientes com doença arterial coronariana crônica que já recebem tratamento otimizado com estatinas, antiagregantes plaquetários e outros medicamentos de prevenção secundária. No entanto, o medicamento não deve substituir essas terapias comprovadamente eficazes, nem alterar a prescrição de fármacos com benefícios estabelecidos. Além disso, ainda são necessários dados mais definitivos, com estudos clínicos de larga escala e desfechos robustos, para confirmar de forma definitiva o benefício da colchicina na prevenção do risco cardiovascular.

No contexto do infarto agudo do miocárdio, os resultados permanecem inconsistentes. Por exemplo, enquanto o estudo COLCOT apontou benefícios, o ensaio CLEAR SYNERGY não confirmou esses achados, Isso sugere que o momento da administração da colchicina (fase aguda versus crônica) pode influenciar a eficácia. Portanto, a decisão de prescrever colchicina nesses pacientes deve ser individualizada, levando em conta o perfil de risco e as comorbidades.

Além das evidências: o quanto a clínica deve orientar a conduta

Quando diferentes estudos demonstram resultados contraditórios, o papel do clínico torna-se ainda mais essencial. Nesses casos, é fundamental avaliar os aspectos individuais do paciente antes de decidir pelo uso da colchicina na redução do risco cardiovascular, considerando, inclusive, que, quanto maior o componente inflamatório revelado pelos dados clínicos e pelo PCR, maior a possibilidade teórica de benefício. Além disso, o medicamento pode ser uma opção válida para pacientes com níveis elevados de ácido úrico (hiperuricemia) ou histórico de gota, já que a colchicina é a principal opção terapêutica nesses cenários.

Independentemente da situação, quanto mais controversa for uma decisão terapêutica, maior a necessidade de compartilhá-la com o paciente. O envolvimento ativo do paciente no processo de escolha contribui para um tratamento mais alinhado às suas condições e expectativas.

Nos casos selecionados, a dose recomendada é de 0,5 mg ao dia, considerada a menor dose terapêutica habitual. Para garantir segurança, é essencial realizar uma monitorização regular dos possíveis efeitos adversos.

Conclusão: um novo horizonte para a colchicina na redução do risco cardiovascular

A colchicina representa uma alternativa promissora para o controle da inflamação na na doença arterial coronariana (DAC), com potencial para reduzir eventos cardiovasculares em pacientes de alto risco. No entanto, apesar dos benefícios observados nos estudos mais recentes sobre a DAC crônica, algumas questões permanecem sem resposta. O impacto na mortalidade não cardiovascular, a eficácia no infarto agudo do miocárdio (IAM) e a qualidade das evidências disponíveis ainda geram debates, especialmente no contexto da DAC crônica.

Para os profissionais de saúde, a mensagem é clara: a colchicina pode ser uma ferramenta valiosa no arsenal terapêutico, mas seu uso deve seguir evidências robustas e uma avaliação cuidadosa do perfil de cada paciente. Com o avanço das pesquisas, espera-se um entendimento mais preciso sobre seu papel na prevenção cardiovascular, possibilitando tratamentos cada vez mais personalizados e eficazes.

Referências:

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